A autolavagem e a dupla punição criminal

A realização de ações posteriores autônomas com o objetivo de dar aparência de licitude a valores recebidos originalmente através da prática de crime tem aptidão suficiente para caracterizar a autolavagem.

O crime de lavagem de dinheiro está previsto na lei 9.613, de 3 de março de 1998, com pena de reclusão de 3 a 10 anos, e multa, e, resumidamente, é imputado àquele que oculta ou dissimula a origem ilícita de bens ou valores que sejam decorrentes de crimes.

“Art. 1o  Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.”

Nesse sentido, o crime de lavagem de dinheiro é considerado delito autônomo em relação à infração criminal antecedente, ou seja, quem pratica essa espécie delitiva pode ser responsabilizado independentemente da condenação pelo delito antecedente:

“Por definição legal, a lavagem de dinheiro constitui crime acessório e derivado, mas autônomo em relação ao crime antecedente, não constituindo post factum impunível, nem dependendo da comprovação da participação do agente no crime antecedente para restar caracterizado.

(REsp 1.342.710/PR, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 22/4/14, DJe de 2/5/14.)”

Assim, por exemplo, se o sujeito pratica o crime antecedente de corrupção passiva, mas não oculta, dissimula ou reintegra os recursos na economia formal, responderá apenas pelo crime previsto no artigo 317 do Código Penal:

 “O recebimento dos recursos por via dissimulada, como o depósito em contas de terceiros, não configura a lavagem de dinheiro. Seria necessário ato subsequente, destinado à ocultação, dissimulação ou reintegração dos recursos – Rel. Min. Luiz Fux, redator para acórdão Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 21/8/14. Absolvição.

(AP 644, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 27/2/18, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-051  DIVULG 15-03-2018  PUBLIC 16-03-2018)”

No julgamento do HC 207.936/MG, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 27/3/12, DJe de 12/4/2012, adotou-se o entendimento segundo o qual a declaração de extinção da punibilidade pela prescrição da infração penal antecedente não implica em atipicidade do delito de lavagem de dinheiro, pois a lavagem de dinheiro independe da responsabilização pelo delito antecedente:

“(…)Aliás, se própria lei 9.613/98 permite a punição dos fatos nela previstos ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime antecedente, é evidente que a extinção da punibilidade pela prescrição de um dos coautores dos delitos acessórios ao de lavagem não tem o condão de inviabilizar a persecução penal no tocante a este último ilícito penal.”

Portanto, de acordo com a jurisprudência anteriormente citada, não se aplica o princípio da consunção entre o crime antecedente e a lavagem de dinheiro, uma vez que não se trata de mero exaurimento impunível do primeiro crime, mas de autonomia material em relação ao delito antecedente:

“O agente que praticou o crime contra o sistema financeiro nacional (art. 22 da lei 7.492/96) pode também ser sujeito ativo do delito de lavagem de capitais (art. 1º da Lei n. 9.613/1998), não constituindo este mero exaurimento impunível do primeiro crime e tampouco ficando caracterizado o bis in idem em decorrência da dupla punição. São condutas independentes, cada qual tipificada autonomamente, inexistindo, no ordenamento jurídico, qualquer previsão excluindo a responsabilidade do autor do crime antecedente pelo delito posterior.

(REsp 1.222.580/PR, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 20/3/14, DJe de 10/4/14.)”

Importante destacar que a condenação pelo delito previsto no art. 1º da lei 9.613/98 depende da comprovação que o autor do crime de lavagem detinha ciência da origem ilícita dos bens, direitos e valores e concorreu para sua ocultação ou dissimulação:

“A condenação pelo delito de lavagem de dinheiro depende da comprovação de que o acusado tinha ciência da origem ilícita dos valores.

(AP 470 EI-décimos sextos, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 13/03/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-161  DIVULG 20-08-2014  PUBLIC 21-08-2014 RTJ VOL-00229-01 PP-00321)”

Posto isso, o autor do crime antecedente que desenvolve uma série de condutas subseqüentes, para dar aparência de licitude à infração penal originária, poderá ser responsabilizado pela autolavagem, isto é, a imputação simultânea, ao mesmo réu, do delito antecedente e do crime de lavagem de dinheiro – concurso material de crimes. Cita-se, como exemplo, o advogado que, por meio de contrato fictício de prestação de serviços advocatícios, disfarça o recebimento de valores oriundos de crimes contra a Administração Pública, e, após essa etapa, utiliza os proveitos da suposta prestação de serviços advocatícios na compra de um imóvel.

“Embora a tipificação da lavagem de dinheiro dependa da existência de um crime antecedente, é possível a autolavagem – isto é, a imputação simultânea, ao mesmo réu, do delito antecedente e do crime de lavagem -, desde que sejam demonstrados atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização do primeiro crime, circunstância na qual não ocorrerá o fenômeno da consunção.

(APn 856/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 18/10/17, DJe de 6/2/18.)”

Em sentido oposto, quando não há comprovação de que o réu realizou ações posteriores autônomas, com o objetivo de dar aparência de legalidade à ação inicial, responderá apenas pelo cometimento do delito originário ou antecedente. No julgamento da APn n. 804/DF, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 18/12/2018, DJe de 7/3/2019, como não foi comprovado que o réu praticou ações autônomas posteriores, com o objetivo de dar aparência de legalidade ao proveito do crime antecedente, não foi aplicada a tese de autolavagem de capitais, subsistindo apenas a condenação pelo delito antecedente:

“Assim, não há que se falar, no caso concreto, de “autolavagem de capitais”, pois o réu não realizou ações posteriores e autônomas com aptidão para convolar os valores obtidos com a prática delituosa em valores com aparência de licitude na economia formal. (…)

Com isso, é de se concluir pela condenação do réu apenas pelo cometimento do delito previsto no art. 317, com a causa de aumento de pena prevista no § 1º, todos do Código Penal. Com a dosimetria efetivada e individualizada a pena in concreto, aplica-se ao réu a uma pena privativa de liberdade de 6 (seis) anos de reclusão.”

Portanto, de acordo com o que foi sustentado nesse estudo, quando o autor do crime antecedente pratica uma série de condutas subsequentes, para dar aparência de licitude à infração penal originária, responderá pela autolavagem, isto é, a imputação simultânea, ao mesmo réu, do delito antecedente e do crime de lavagem de dinheiro, e poderá ser responsabilizado em concurso material de delitos.


Lei 9.613, de 3 de março de 1998.

REsp 1.342.710/PR, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 22/4/14, DJe de 2/5/14.

AP 644, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 27/2/18, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-051  DIVULG 15-03-2018  PUBLIC 16-03-2018.

HC 207.936/MG, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 27/3/12, DJe de 12/4/12.

REsp 1.222.580/PR, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 20/3/14, DJe de 10/4/14.

AP 470 EI-décimos sextos, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 13/3/14, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-161  DIVULG 20-08-2014  PUBLIC 21-08-2014 RTJ VOL-00229-01 PP-00321.

APn 856/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 18/10/17, DJe de 6/2/2018.

APn 804/DF, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 18/12/2018, DJe de 7/3/2019.

REsp 1.829.744/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 18/2/20, DJe de 3/3/20.

APn 922/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 5/6/19, DJe de 12/6/19.

APn 923/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 23/9/19, DJe de 26/9/19.

HC 85949, Relator(a): CARMEN LUCIA, Primeira Turma, julgado em 22/08/2006, DJ 06-11-2006 PP-00038 EMENT VOL-02254-02 PP-00407 RTJ VOL-00199-03 PP-01132.

HC 165036, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 9/4/19, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-051  DIVULG 09-03-2020  PUBLIC 10-03-2020.