O crime de denunciação caluniosa de acordo com a interpretação dada pela lei 14.110/20

A nova redação dada para o crime de denunciação caluniosa prevê a imputação àquele que, dolosamente, der causa à instauração de qualquer procedimento apuratório contra o sabidamente inocente.

Em 18 de dezembro de 2020 foi publicada a lei 14.110, que alterou o artigo 339 do Código Penal, para dar nova redação ao crime de denunciação caluniosa, e incorporar ao texto originário, que previa punição apenas quando a falsa acusação estava relacionada a crime, a possibilidade de punir aquele que se utiliza do Estado para vingança pessoal, e passou a criminalizar o agente  que – dolosamente – movimenta, indevidamente, a máquina do Estado, com o objetivo de atribuir a terceiro inocente fato inverídico, que tenha como propósito a instauração de procedimento persecutório:

Art. 339. Dar causa a` instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente: (Redação dada pela lei 14.110, de 2020)

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa.

Isso quer dizer que o novo conceito de denunciação caluniosa possibilita punição àquele que, dolosamente, por exemplo, der ensejo à abertura de processo administrativo na Ordem dos Advogados do Brasil:

“A abertura de processo administrativo no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil pode configurar o delito de denunciação caluniosa, desde que preenchidos os demais elementos constitutivos do tipo penal.

(HC 477.243/DF, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 23/4/19, DJe de 7/5/19.)”

Importante destacar que o delito previsto no artigo 339 do Código Penal só é punível a título de dolo, através de conduta comissiva, isto é, o criminoso tem certeza da inocência da pessoa a quem se atribui a prática desabonadora. No julgamento do RHC n. 147.724/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 19/10/21, DJe de 26/10/21, houve a condenação pelo crime de denunciação caluniosa, de ex-esposa que acusou injustamente o ex-marido de tentativa de homicídio:

“Situação em que a denúncia narra que a recorrente apresentou notícia, perante a autoridade policial, de que seu ex-marido teria acelerado o veículo que conduzia, em sua direção, no interior do estacionamento de um clube, com a intenção de matá-la, apurando-se, no entanto, em laudo pericial, que a recorrente teria se colocado intencionalmente na frente do carro conduzido por seu ex-esposo, que trafegava em baixa velocidade no interior do estacionamento.”

A caracterização do delito em análise independe do resultado final de investigação instaurada em desfavor da vítima, uma vez que a indevida movimentação da máquina do Estado, contra pessoa sabidamente inocente, atinge a consumação do crime no momento em que a administração da Justiça é induzida em erro:

“O delito de denunciação atingiu a consumação, pois, ainda que a queixa-crime não tenha sido recebida, o recorrente levou ao conhecimento do poder judiciário fato desprovido de mínimo lastro probatório, movimentando a máquina pública de maneira indevida, o que, inclusive, deu ensejo à instauração de processo judicial e à realização de uma série de atos para a apuração de conduta da qual sabia ser a pessoa alvo da imputação inocente.

(AgRg no AREsp n. 1.994.946/RS, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 17/5/22, DJe de 20/5/22.)”

Como a caracterização da denunciação caluniosa depende da instauração de procedimento apuratório, quando a atuação dolosa do denunciante não ensejar em formalização de procedimento para apurar os fatos narrados na falsa denúncia, a conduta será considerada atípica:

“Não tendo sido instaurado procedimento investigatório disciplinar contra a reputada vítima, já que a reclamação apresentada pelo agravado, que fora autuada como “notícia de fato”, foi arquivada, de plano, resta clara a inexistência de movimentação indevida do órgão de controle administrativo e, por consectário, impõe-se o reconhecimento da atipicidade da conduta descrita na peça acusatória.

 (AgRg no RHC n. 88.132/RN, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 11/5/2021, DJe de 13/5/21.)”

Em sentido oposto, quando há abusividade no exercício da autodefesa, com acusações infundadas contra os agentes do Estado responsáveis pela prisão do denunciante, caso seja instaurada investigação para a apuração das condutas narradas pelo custodiado, o mesmo responderá, também, pelo crime previsto no artigo 339 do Código Penal:

“Para caracterização do crime de denunciação caluniosa é imprescindível que o sujeito ativo saiba que a imputação do crime é objetivamente falsa ou que tenha certeza de que a vítima é inocente.”(RHC 106.998/MA, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 21/02/2019, DJe 12/03/2019), como na hipótese dos autos, onde o paciente, ao ser ouvido na audiência de custódia, narrou que três policiais civis, ao buscarem lhe capturar, teriam desferidos tiros em sua direção, agredido e xingado seus familiares, além de lhe ameaçar, dando causa à instauração de investigação administrativa e instauração de inquérito contra os referidos agentes públicos, pela suposta prática dos crimes de disparo de arma de fogo, abuso de autoridade e ameaça.

(AgRg no HC n. 622.955/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 1/6/2021, DJe de 7/6/21.)”

Convém realçar que a rejeição sumária de queixa-crime não á apta – por si só – para a caracterização do delito de denunciação caluniosa, pois, de acordo com o que foi sustentado nesse estudo, é imprescindível a existência de dolo na conduta do agente, isto é, a certeza da inocência da pessoa a quem se atribui a prática desabonadora. No RHC n. 101.728/PA, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 8/10/2019, DJe de 14/10/2019, foi determinado o trancamento de uma ação penal movida exclusivamente com base na rejeição sumária de uma representação:

“Pelo que consta dos autos, o Tribunal entendeu simplesmente que o fato de a representação e de a queixa terem sido rejeitadas caracteriza o crime de denunciação caluniosa. Com efeito, a rejeição da queixa não quer dizer que o recorrente tenha tido o dolo direto para fazer uma denunciação caluniosa.

  1. Recurso em habeas corpus provido para determinar o trancamento da ação penal.

Por fim, é pacífica a jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça de que a competência do juízo será do local onde foram iniciadas as investigações sobre o fato denunciado:

“A jurisprudência desta Corte Superior é firme em assinalar que, “considera-se consumado o crime de denunciação caluniosa no local onde foram iniciadas as investigações, ainda que preliminares, sobre o fato denunciado”.

 (AgRg no RHC 55.609/RJ, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 1/12/20, DJe de 10/12/20.)”

Portanto, de acordo com o que foi sustentado nesse estudo, a conduta típica da denunciação caluniosa depende dos seguintes requisitos: a) Atuação do agente contra a própria convicção, intencionalmente e com conhecimento de causa, sabendo que o denunciado é inocente; b) Efetiva instauração de procedimento apuratório.