A razoabilidade na aplicação do princípio da insignificância em crimes contra a Administração Pública

Como o Direito Penal não é instrumento de repressão moral, a aplicação automatizada da Súmula 599 do STJ viola o princípio da individualização da pena.

É dominante o entendimento jurisprudencial que o princípio da insignificância, ou bagatela – que, em regra, é imputado a fato criminoso sem lesão expressiva ao bem jurídico tutelado – não é aplicável aos crimes contra a Administração Pública, pois a interpretação majoritária fixada pelo Superior Tribunal de Justiça dispõe que moral administrativa é insuscetível de valoração econômica:

“Segundo a jurisprudência desta Corte, não se aplica o princípio da insignificância aos crimes cometidos contra a administração pública, ainda que o valor seja irrisório, porquanto a norma penal busca tutelar não somente o patrimônio, mas também a moral administrativa.

(AgRg no AREsp n. 487.715/CE, relator Ministro Gurgel de Faria, Quinta Turma, julgado em 18/8/2015, DJe de 1/9/2015.)”

Com efeito, o Artigo 8º do Código de Processo Civil estabelece que o princípio da razoabilidade deva fazer parte da estruturação do ordenamento jurídico:

“Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.”

Assim, como o Direito Penal não é instrumento de repressão moral – mas de repressão e prevenção criminal -, quando a eventual ofensa ao bem jurídico tutelado não produz efetivo dano à coletividade, não há razões conceituais para que seja dado prosseguimento a um processo de apuração de fato criminoso que não causou efetivo dano material à vítima.

Portanto, de acordo com o princípio da individualização da pena, que impede a padronização da sanção criminal, a manutenção de conceitos jurídicos pré-concebidos – como é o caso da aplicação objetiva da súmula 599 do STJ, que automaticamente impede a aplicação do princípio da insignificância a delitos praticados contra a Administração Pública -, não contribui para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, pois a fixação de uma pena corporal deve ter como fundamentos a reprovação e prevenção do crime, conforme disposto no artigo 59 do Código Penal:

“Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”

Ora, se em determinados crimes praticados contra a Administração Pública não houve ofensa ao bem jurídico tutelado, não há razões processuais para que o princípio da insignificância seja objetivamente descartado em face de existência de conceitos pré-concebidos.

No julgamento do RHC 85.272/RS, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 14/8/2018, DJe de 23/8/2018, foi aplicado o princípio da insignificância a crime de dano praticado contra a Administração Pública, pois foi constatado que a inexpressiva lesão jurídica provocada não mereceria a intervenção estatal:

“A subsidiariedade do direito penal não permite tornar o processo criminal instrumento de repressão moral, de condutas típicas que não produzam efetivo dano. A falta de interesse estatal pelo reflexo social da conduta, por irrelevante dado à esfera de direitos da vítima, torna inaceitável a intervenção estatal-criminal.

A despeito do teor do enunciado sumular 599, no sentido de que O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública, as peculiaridades do caso concreto – réu primário, com 83 anos na época dos fatos e avaria de um cone avaliado em menos de R$ 20,00, ou seja, menos de 3% do salário mínimo vigente à época dos fatos – justificam a mitigação da referida súmula, haja vista que nenhum interesse social existe na onerosa intervenção estatal diante da inexpressiva lesão jurídica provocada.”

Em outro caso similar, também de relatoria do eminente Ministro Nefi Cordeiro, por considerar que a lesão ao patrimônio público foi mínima, Sua Excelência reconheceu a atipicidade da conduta, pela aplicação do princípio da insignificância, para absolver uma pessoa acusada pela prática do delito previsto no art. 163, parágrafo único, inciso III, do Código Penal:

“Sedimentou-se a orientação jurisprudencial no sentido de que a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

(…)

É de ser considerada insignificante a conduta do paciente em rasgar o lençol que lhe foi oferecido no presídio pela Secretaria de Segurança Pública local, porquanto a lesão ao patrimônio público foi mínima em todos os vetores.

(HC n. 245.457/MG, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 3/3/2016, DJe de 10/3/2016.)”

Aliás, a Quinta Turma do STJ já se manifestou favorável à mitigação da súmula 599 do STJ e, por considerar que a destruição de uma lâmpada não causou prejuízos materiais à coletividade, o eminente Relator do caso Ministro José Arnaldo da Fonseca concedeu ordem de habeas corpus, para declarar a atipicidade do suposto crime de dano qualificado praticado contra a Administração Pública:

“RECURSO EM HABEAS CORPUS. DANO QUALIFICADO. DESTRUIÇÃO DE UMA LÂMPADA DE ÍNFIMO VALOR (R$ 0,30), EM PRÉDIO PÚBLICO. INSIGNIFICÂNCIA DO PREJUÍZO, A JUSTIFICAR O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL, POR ATIPICIDADE DA CONDUTA.

Recurso conhecido e provido.

(RHC n. 9.359/SP, relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 16/12/1999, DJ de 8/3/2000, p. 134.)”

Neste mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal aplicou o princípio da insignificância, para absolver uma pessoa condenada a dois anos de reclusão pelo crime de peculato, por ter subtraído da Administração Pública duas luminárias avaliadas em R$ 130,00 (cento e trinta reais). O relator do caso, Ministro Gilmar Mendes, com brilhantismo, abordou em seu voto que não cabe ao Direito Penal atribuir relevância típica a casos que efetivamente não ofendem qualquer bem jurídico tutelado:

“Não é razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica a subtração de objetos da Administração Pública, avaliados no montante de R$ 130,00 (cento e trinta reais), e quando as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade.

Isso porque, ante o caráter eminentemente subsidiário que o Direito Penal assume, impõe-se a sua intervenção mínima, somente devendo atuar para a proteção dos bens jurídicos de maior relevância e transcendência para a vida social. Em outras palavras, não cabe ao direito penal – como instrumento de controle mais rígido e duro que é – ocupar-se de condutas insignificantes, que ofendam com o mínimo grau de lesividade o bem jurídico tutelado. Assim, só cabe ao Direito Penal intervir quando outros ramos do direito se demonstrarem ineficazes para prevenir práticas delituosas (princípio da intervenção mínima ou ultima ratio), limitando-se a punir somente as condutas mais graves dirigidas contra os bens jurídicos mais essenciais à sociedade (princípio da fragmentariedade).

(HC 107370, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 26/04/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG 21-06-2011 PUBLIC 22-06-2011)”

Portanto, a aplicação da súmula 599 do STJ não deve ser automatizada, uma vez que a tipicidade formal não pode ser dissociada da tipicidade material e, como afirmado, o Direito Penal não é instrumento de repressão moral – mas de repressão e prevenção criminal -, e quando não há ofensa ao bem jurídico tutelado, não há razões processuais para que seja dado prosseguimento a fato jurídico natimorto.


Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

Súmula 599 do STJ: O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública.

Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal

Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal

Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil

AgRg no AREsp n. 487.715/CE, relator Ministro Gurgel de Faria, Quinta Turma, julgado em 18/8/2015, DJe de 1/9/2015

RHC n. 85.272/RS, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 14/8/2018, DJe de 23/8/2018

HC n. 245.457/MG, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 3/3/2016, DJe de 10/3/2016

RHC n. 9.359/SP, relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 16/12/1999, DJ de 8/3/2000, p. 134

HC 107370, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 26/04/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-119 DIVULG 21-06-2011 PUBLIC 22-06-2011